segunda-feira, 16 de julho de 2012


Incrível: “Diário Oficial” publica, em manchete, matéria que ignora estatísticas, estudos de comportamento e Código de Trânsito, para sugerir que ciclistas são culpados por seu próprio atropelamento

Por Willian Cruz, no Vá de Bike

(Título original: “Governo de SP recomenda pedalar só no parque”)

Tem circulado a notícia de que nove ciclistas são internados por dia no estado de São Paulo e ao menos um deles morre em decorrência dos ferimentos. Ciclistas estão sendo feridos e mortos – e não é por caírem sozinhos. A solução para isso passa por várias coisas: infraestrutura, campanhas educativas, sinalização, fiscalização…
Mas não parece ser o que pensa o Governo de São Paulo, se analisarmos a matéria publicada no Diário Oficial de hoje (11/07/2012). Após discorrer sobre os ferimentos e imputar a culpa aos ciclistas, a recomendação é usar a bicicleta apenas como lazer, “em cidades menores, parques públicos e em ciclovias instaladas na capital, aos domingos”. Quem diz é o especialista consultado, que dá embasamento ao tom da matéria.
Mais bicicletas, menos acidentes
Os erros da matéria começam pelo título. Um estudo dos lugares mais seguros e mais perigosos para se pedalar na Grã-Bretanha, divulgado em 2009, mostrava que a taxa de acidentes com ciclistas costuma ser mais baixa onde há mais bicicletas circulando.
O estudo sobre segurança viária de ciclistas Safety in Numbers, citado pela Transporte Ativo, demonstra que ”consideradas diversas circunstâncias, se o uso da bicicleta dobra, o risco individual de cada ciclista cai em aproximadamente 34%”.
E por que isso? Por dois motivos principais. Em primeiro lugar, quanto mais bicicletas nas ruas, menos elas passam despercebidas. Os motoristas se acostumam a vê-las, a resistência à sua presença diminui, as pessoas nos carros cada vez mais sabem como reagir ao encontrá-las. Em segundo lugar, e talvez mais importante, cada vez mais as pessoas que dirigem passam a conhecer pessoas que pedalam, seja um amigo, um parente, um colega de trabalho. E passam a entender que aquele ciclista ali na frente também é uma pessoa, não um obstáculo.
Especialista
O que é óbvio para quem vive a bicicleta no dia a dia, o que salta aos olhos de quem se dispõe a estudar o assunto, continua sendo difícil de ser aceito para algumas das pessoas que apenas dirigem. É o caso do ortopedista escolhido para opinar sobre mobilidade urbana.
Mas espera aí… ortopedista? Sim, você leu direito. O entrevistado deve ser um excelente profissional de medicina – afinal, é chefe do grupo de trauma ortopédico do Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. Mas, me desculpem, aparenta não entender muito de mobilidade urbana.
O médico decidiu explicar, pelo que parece, do alto de sua experiência como motorista e sem nenhuma vivência no uso da bicicleta nas ruas, sobre a causa dos acidentes com ciclistas. Para ele, “o acidente acontece porque o motorista não vê o ciclista, que se desequilibra diante da situação perigosa“.
Se alguém te matar, a culpa é sua
O bom doutor acerta na trave quando fala sobre ciclistas se desequilibrando diante de situações perigosas. Essa frase esclarece a necessidade da ultrapassagem a 1,5m de distância, como determina o Código Brasileiro de Trânsito. Mas o profissional de saúde comete um equívoco do tamanho de um bonde ao colocar todos os “acidentes” nessa mesma panela e, principalmente, ao atribuir a culpa de uma situação como essa ao ciclista.
Em resumo, a mensagem passada pela matéria do Diário Oficial é que se você estiver pedalando e um carro passar perigosamente perto de você, a culpa é sua, não do motorista que desrespeitou a lei de trânsito e colocou deliberadamente sua vida em risco.
A matéria ignora que ciclistas que pedalam nas ruas dificilmente caem sozinhos. Desconsidera que traumas graves nos membros inferiores são geralmente causados por rodas ou para-choques de veículos maiores. Também ignora solenemente os atropelamentos e ameaças à vida do ciclista, sejam intencionais, por imperícia ou negligência na condução do veículo maior. Mostra desconhecimento do Código de Trânsito e da prioridade de circulação nas vias. Passa ao largo do respeito à vida, do compartilhamento, do uso comum do espaço público. E atropela todas as noções de civilidade ao isentar motoristas de culpa, atribuindo-a única e exclusivamente ao ciclista, usando um exemplo de claro desrespeito à vida como regra geral e suposta falha do ciclista. Afinal, quem é louco de andar de bicicleta nas ruas? O lugar delas é no parque…
Além de divulgar um conceito distorcido em um veículo oficial – o que obviamente traz questionamentos sobre a política do governo sobre o assunto – o texto encerra com a recomendação do médico para resolver o problema das mortes de ciclistas no trânsito: deixar de usar a bicicleta como meio de transporte. Matérias desse tipo em um veículo que traz consigo o peso de declaração oficial aumentam a agressividade com ciclistas nas ruas, por parte de motoristas que passam a ter certeza de que aquela bicicleta não deveria estar ali e aquele idiota que atrapalha o trânsito deve ser punido por isso.
Se a matéria fosse sobre atropelamento de pedestres, a recomendação seria deixar de andar nas ruas. Quer atravessar a avenida? Tome um táxi. Afinal, você pode se assustar com um carro em alta velocidade, tropeçar e cair na sua frente – e será essa a causa do acidente.
Ignorando o elefante na loja de cristais
Mikael Colville-Andersen chama isso de ignorar o touro na loja de porcelana. Abrasileirando a expressão, ignorar o elefante na loja de cristais.
O uso excessivo do automóvel, a infraestrutura viária que estimula esse uso, o excesso de velocidade, a ingestão de álcool antes de dirigir, a priorização ao transporte individual motorizado, a falta de reconhecimento e aceitação da bicicleta nas ruas, a impunidade aos crimes de trânsito e os exames de habilitação pouco objetivos (e passíveis de serem “comprados”) são algumas das causas para tantas pessoas morrerem no trânsito todos os dias. Não apenas ciclistas, mas pedestres, motociclistas e até mesmo condutores e passageiros de automóveis, ônibus e caminhões.
Mas é muito comum ignorar tudo isso, avaliando a questão por uma ótica pessoal, para discorrer sobre os perigos de se usar a bicicleta. A culpa é do ciclista, que não deveria estar na rua. É do pedestre, que demorou demais para atravessar. Mas é raro questionar a conduta do motorista, ainda que pela lei e pelo bom senso seja ele o responsável pela segurança dos que estão em veículos menores (ou sem veículo algum). Veja: se eu resolver andar em um local cheio de gente carregando um objeto enorme, que pode ferir fatalmente ao menor descuido, de quem é a obrigação de tomar cuidado para que nada de errado aconteça?
A comparação com o elefante na loja de cristais é inevitável: em vez de tirar o elefante de lá (ou ao menos adestrá-lo a não esbarrar em nada), recomendam colocar proteções no topo de cada taça para que não quebrem ao cair; colocar proteções entre elas e o elefante, restringindo as taças para os locais protegidos, ainda que sejam parte ínfima da loja; ou até, como nessa matéria, retirá-las da loja. Deixem o elefante em paz. Afinal, a loja foi feita para elefantes, quem não deveria estar ali são as taças.
Outro lado
O Estadão, ao abordar o assunto, teve o profissionalismo de ouvir a opinião também de um especialista no uso de bicicletas nas grandes cidades. Em contrapartida à opinião de outro médico, que conta que 90% dos ciclistas estão sem capacete no momento do “choque” com outros veículos (como se essa falta causasse os atropelamentos), Thiago Benicchio, Diretor da Ciclocidade, afirma que o grande número de acidentes se deve a uma relação desproporcional de pesos e velocidades dos carros e à agressividade dos motoristas.
“Essa relação só será menos desigual quando houver mais educação da população para aprender a dividir as ruas, mais infraestrutura, com ciclovias e ciclofaixas, e diminuição da velocidade máxima”, diz Benicchio ao Estadão. Para ele, a velocidade máxima em avenidas deveria ser de 50 km/h e em vias expressas dentro da cidade não poderia ultrapassar 70 km/h. Leia a matéria completa.

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