Superação através da bicicleta.
Revista Bicicleta por Teresa D’Aprile 04/12/15
Após uma separação de um casamento de 12 anos,
realizei uma mudança de vida radical. Com 37 anos, voltei a estudar,
comecei a trabalhar e, não sei por que, comprei uma bicicleta e comecei a
utilizá-la como meio de transporte, o que até então eu não fazia. Era
uma Caloi Ceci preta, sem marchas, com a qual eu ia e voltava do
trabalho. Hoje, esta bicicleta está no Museu da Bicicleta, em Joinville.
Em 1990, conheci um ciclista, Arturo Alcorta, e começamos a namorar.
Ele me ajudou a conseguir um emprego em uma loja de bicicletas: comecei a
gerenciar a Good Bike, na Avenida Cidade Jardim. Foi ele também que me
deu uma bicicleta com marchas, ensinou a parte técnica e orientou
treinamentos. Eu já estava com 42 anos e senti na pele como é difícil
iniciar no ciclismo quando se tem uma idade mais avançada e por ser
mulher. Mas não desisti e me apaixonei pela bicicleta. Minhas amigas
pediam: “você não tem vergonha? Nós também gostaríamos de pedalar, mas
não temos coragem”. Na época, uma mulher com mais idade pedalando gerava
preconceito. Hoje ainda gera, mas já foi muito pior.
Em 1991, fui com o Arturo para Recife correr uma etapa da Copa Halls.
Na época eu tinha uma Caloi Ventura com cinco marchas. Divertimo-nos
muito pedalando na areia. Logo depois, o pessoal que trouxe a
Specialized para o Brasil, o Dranger Associados, e Arturo que trabalhava
com eles, fizeram-me uma proposta: se eu conseguisse completar um
InterCity de 50 km, ganharia uma Specialized. Aceitei o desafio. E lá
fui eu com uma bicicleta top, mas sem a menor ideia do que seria terra,
trilha e 50 km. Na primeira subida eu já empurrei. Fui ao desespero, não
chegava nunca. Em um dado momento sentei no chão e comecei a chorar de
raiva. Xingava o Arturo e a bicicleta. Pensava: o que estou fazendo
aqui? Demorei quase quatro horas para chegar... Quando o carro de apoio
chegou e queria me levar, eu disse: “não, irei até o final pedalando,
custe o que custar”. Cheguei exausta, recebi um troféu e ganhei a
Specialized Rock Hooper que tenho até hoje e que já me acompanhou em
várias aventuras. Foi um dos dias mais felizes da minha vida. Eu não
parava de sorrir e fiz festa para mim mesma.
Foi aí que entendi que a gente faz o que quiser, não importa a idade;
é só querer. Isto me fez sentir muito mais segura e acreditar em mim
mesma, não só na bicicleta, mas na vida. Entendi que o importante é
fazer, não importa o tempo que levar. Aprendi a lidar com a insegurança,
porque você não tem ideia do que vai ter que enfrentar. Tive várias
outras experiências muito legais, mas foi a partir desta que comecei a
mudar minha vida e continuei a trilhar o meu caminho.
Outros fatos marcantes foram quando participei da 9 de Julho, sozinha
com autorização do presidente da Federação Paulista de Cislismo. Fui a
primeira mulher acima dos 50 a completar a prova. No final da última
volta eu caí, peguei uma tartaruga no asfalto. A ambulância veio mas eu
levantei do chão, toda ralada e rasgada, e fui até o final. Recebi a
medalha de participação e comecei a chorar de emoção por ter realizado a
prova. O pior foi voltar para casa pedalando toda machucada e dolorida.
Outro momento interessante foi quando cheguei em Brasília, em 1998;
Renata e alguns meninos saíram de São Paulo e pedalaram 1.500 km pela
mudança do código de trânsito. Eu fiz dois trechos com eles. Também já
realizei algumas cicloviagens que ficaram marcadas pela superação, como a
subida da Serra Dona Francisca, e o circuito Vale Europeu, ambos em
Santa Catarina.
O grupo Saia na Noite
Renata Falzoni, prima de Arturo, já tinha trazido o Night Bikers para
o Brasil, então, resolvi fazer como ela e sair à noite pedalar, só com
meninas. Em 1992 formei um grupo de mulheres ciclistas, o Saia na Noite,
que coordeno desde então para ajudar as mulheres a entrar neste mundo
maravilhoso. Através deste grupo conquistei muitas amizades. Uma noite
só para nós é muito bom. Juntas, nós tricotamos, trocamos receitas,
falamos sobre filhos, relacionamentos e trabalho. Algumas mulheres
trazem as filhas ou filhos também, para incentivar.
Não temos muita regra: se, de repente, passamos em algum lugar onde
está acontecendo algo diferente, damos uma paradinha e, ao invés de
pedalar toda a quilometragem programada, paramos para nos divertir.
Alguns namorados, maridos e amigos que não pedalam, fazem questão de
incentivar as companheiras e esperam na pizzaria por duas horas até
voltarmos da pedalada. É muito gratificante poder participar disto.
Em resumo, somos terapeutas, estamos sempre prontas para ouvir. Somos
livres e temos aventuras para contar. Quando um grupo é formado, surge
uma família onde cada um tem suas próprias características, mas juntos,
todos formam a identificação do grupo e fazem a diferença. É muito
melhor pedalar assim, em grupo. Ninguém vive sozinho, e tenho que
agradecer as meninas por estarem juntas comigo. Só eu sei como foi
difícil chegar até aqui, principalmente pelo preconceito com relação à
idade, o que hoje já está mudando.
Bicicleta, minha vida
Para mim a bicicleta representa:
• Liberdade, é uma poderosa ferramenta para trocas de cultura sociais e pessoas para quem a utiliza.
• Uma transformação positiva em si mesma.
• Uma forma de descobrir o novo.
• Uma ferramenta para enfrentar novos desafios.
• Prazer.
• Força.
• Determinação.
• O sorriso da conquista.
Acho que a bicicleta já é uma realidade em todo o Brasil. A tendência
é que o número de pessoas que despertam para os benefícios da magrela
continue crescendo. O meu trabalho eu estou fazendo. O Saia na Noite já
completou 22 anos, e muitas mulheres já passaram e ainda vão passar pelo
grupo.
Hoje, aos 65 anos, posso dizer que amo o que faço, e além dos
passeios, ainda uso a bike como meio de transporte. Bicicleta é
integração, inclusão social, novos desafios e, o que é mais legal,
conhecer o novo: novas pessoas, novas histórias. Só posso dizer que a
bicicleta é a minha vida, e enquanto as pernas aguentarem estarei
pedalando.
Saia na noite
O objetivo do Grupo Saia na Noite é promover pedaladas femininas
visando incentivar um modo de transporte autossustentável e não
poluente. Ainda visa fortalecer e estimular mulheres adultas a melhorar
sua qualidade de vida física e emocional, além de encontrar
autossuficiência e liberdade, tendo como ponto de partida a bicicleta e a
troca de experiência com mulheres que a utilizam como meio de
transporte, lazer ou esporte.
O Grupo de Pedal Saia na Noite foi criado por Teresa e outras
mulheres que já pedalavam e sentiam a necessidade de abrir um espaço só
para elas. O passeio acontece num ritmo mais lento, com paciência para
ensinar as técnicas da pedalada. A filosofia do grupo é de que uma
mulher a mais pedalando significa uma transformação positiva em si mesma
e com os que ela se relaciona. Através da bicicleta se ganha outra
disposição, outro brilho no olhar, saúde, boa forma e felicidade.
As saídas são sempre às terças à noite, da Pizzaria Primo Basílico,
na Al. Gabriel Monteiro da Silva, em São Paulo. O roteiro de
aproximadamente 25 km abrange algumas subidas, mas superadas em um ritmo
bem lento, sempre incentivando as novatas e respeitando o ritmo das
mais lentas. Mesmo que alguma principiante tenha que empurrar a
bicicleta, o grupo vai sempre junto.
Uma quinta-feira por mês há passeios diferentes, pedais gastronômicos
ou temáticos, como o Saia de Pijama, Saia na Sopa, Saia na Frente. São
passeios mais curtos, com 15 km, sem subidas. E um domingo por mês é
realizado o Saia Pró, um pedal com cerca de 50 km, geralmente cultural,
sem hora para voltar, ou em alguns casos, roda-se as imediações da
cidade em um ritmo mais forte, onde participam as mulheres mais
preparadas. Em outro domingo por mês, há ainda o Saia Light, com no
máximo 15 km, sem subidas, para quem está começando.
O grupo conta com uma equipe de mulheres que ajudam na organização.
Algumas fazem o fechamento do grupo, outras vão no meio e outras
incentivando, todas usando rádio comunicador. O número de ciclistas por
passeio é de 35 a 50 mulheres.