terça-feira, 29 de abril de 2014

Linha do desejo.


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Linha de Desejo

Será que a engenharia de tráfego e os urbanistas a quem se incube a missão de planejar as cidades se importam por qual é a linha que as pessoas tendem a seguir?

Revista Bicicleta por Anderson Ricardo Schörner
29/04/2014
Linha de Desejo
Foto: Anton Novikov
O filósofo francês Gaston Bachelard, em seu livro A Poética do Espaço (1958), cunhou uma expressão interessante: os caminhos desejados, ou linha de desejo. Quando muitas pessoas percorrem o mesmo trajeto, aquele caminho fica marcado, a terra fica batida, a grama fica amassada, enfim, abre-se um espaço limpo onde a maioria prefere passar. Essa é a linha de desejo, que representa a tendência humana para ligar aqueles dois pontos. Essa linha fica esculpida no chão, representa o que inconscientemente as pessoas procuram para se deslocar naquele espaço.
Qual seria o caminho desejado pelas pessoas para se deslocar? Será que a engenharia de tráfego e os urbanistas a quem se incube a missão de planejar as cidades se importam por qual é a linha que as pessoas tendem a seguir?
Essas ideias e questionamentos têm sido utilizadas pelo dinamarquês Mikael Colville-Andersen, idealizador do conceito cycle chic, para mostrar que é o povo que deve escolher como deseja se locomover. Ele cita exemplos de planejadores urbanos que, em algumas cidades, visitam os parques depois de uma nevasca, para ver claramente por onde as pessoas querem transitar e construir o caminho naquele trilho.
Outro exemplo que Mikael cita em seu blog Copenhagenize.com, trata-se de uma linha de desejo que os ciclistas traçaram em Copenhague. No cruzamento de duas ruas, grande parte dos ciclistas seguia em direção ao centro, mas muitos outros subiam na calçada para pegar outro caminho. Tecnicamente, essa atitude era ilegal, mas como eram milhares de ciclistas fazendo a mesma coisa o tempo todo, havia duas saídas para resolver a questão: colocar efetivo nas ruas para fiscalizar e multar quem cometesse essa infração, ou entender que aquele era um caminho de desejo das pessoas e transformá-lo em uma ciclofaixa. Optaram por traçar o caminho de preferência para as bicicletas cortando a calçada, porque aquele é o caminho que os usuários inconscientemente desejam para se deslocar.
Essa sensibilidade permite que as cidades sejam lugares para pessoas e atendam às suas necessidades. Faraônicas infraestruturas para absorver cada vez mais carros nas ruas, estruturas estas modeladoras de atitudes que facilitem o escoamento dos veículos (o pedestre ficar encurralado na calçada e o ciclista ter que abandonar a bicicleta por não ser bem-vindo nas ruas) são um erro de engenharia, não traduzem o desejo e a preferência humana.
Uma cidade promotora de qualidade de vida, acolhedora, humanizada, observa os padrões de desejo e necessidade daqueles que nela habitam ou por nela trafegam, modelando e ajustando a infraestrutura a esses padrões. Quanto mais pessoas escolhendo o caminho certo, mais ele vai ficando marcado e atraindo outras pessoas a segui-lo.
É por isso que apenas criar ciclovias, ciclofaixas e outras variantes de faixas preferenciais para bicicletas não significa, necessariamente, atender às necessidades dos ciclistas. Temos publicado sistematicamente matérias sobre ciclovias de todo o Brasil, e o que se vê são aproveitamentos de espaços inutilizados, o espaço público sendo tratado apenas como instrumento de governança. Quando "sobra" uma tira, constrói-se uma ciclovia, mas  o que deveria ser levado em conta é a demanda pelas vias, ou seja, a quantidade de bicicletas que escolhe passar por determinado caminho. O ideal seria marcar esse caminho, não com sangue, como acontece tantas vezes, mas com a adaptação da infraestrutura para receber de maneira respeitosa e segura as bicicletas.
Sim, pode ser que os pneus de nossas bicicletas tenham o poder de marcar esse caminho - a linha de desejo - e, algum dia, os urbanistas o percebam e o sinalizem. Da nossa parte, resta continuar a trilhá-lo, conforme nossas necessidades e desejos.
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